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quarta-feira, 1 de janeiro de 2014
A Virada
Branco para ter paz, diziam. Mas o que era paz? Paz não era aquilo que ela sentia quando tomava seus remédios? Aquele vazio repentino que a fazia dormir tranqüila sem pensar em nada? Não era isso a dita paz? Marcia escolhia a roupa sem entusiasmo.
“Usa uma calcinha vermelha pra você encontrar um amor” — sussurrava-lhe a irmã. Marcia não queria encontrar um amor. Marcia não queria encontrar nada. Aquilo tudo era bobagem, seria só mais uma virada de ano com a família na casa da praia. Todas iguais desde que ela se lembrava. Com o tempo só ficavam mais vazias, mais e mais brancas, como a roupa que eles usavam nesse ritual sem sentido que Marcia não entendia e fingia dar alguma importância só para não contrariar.
À mesa, lhe recomendavam comer lentilha para atrair dinheiro, simpatias, crendices. Meia-noite, um brinde de champagne, sorrisos, copos estalando. Tomou só um golinho por causa dos remédios, estes sim, mais do que o branco ou as simpatias, talvez lhe trouxessem alguma paz.
Festejos, abraços, as melhores intenções. Marcia sorria com esforço, atendia ao pedido da mãe para que não fosse desagradável.
Logo que pôde, recolheu-se para longe das comemorações.
Enquanto outros faziam retrospectivas do ano, sozinha em seu quarto, Marcia revivia frustrada as coisas que não fez, as coisas que não quis fazer, as coisas que não pôde fazer. Coisas que sequer tinha certeza que queria.
Ouviu os outros voltando da praia. Tinham ido ver os fogos, pular ondas para se limpar, para ter boa sorte, tudo bobagem, Marcia não acreditava nessas coisas. Marcia não acreditava em nada.
Os foguetes que não a deixavam descansar diminuíram aos poucos. A euforia da festa abandonava as pessoas e logo tudo era silêncio. Ela se revirava de um lado para o outro na cama grande. Um calor inusitado a importunava. De que vale tudo isto?
Outro ano começava e ela pressentia que seria exatamente igual. Ao final dele, estaria novamente na virada com a família, na praia, vestindo branco, sorriso forçado, um gole de champagne... Nada para comemorar, nada para se arrepender, nada para se orgulhar, nada.
As horas escorriam com Marcia angustiada em seus pensamentos. Levantou e abriu a gaveta do criado mudo, contou as cartelas de remédio controlado que tomava. Recolheu todas, calçou as sandálias e deixou o quarto.
Encontrou a casa vazia, altas horas da madrugada, todos já dormiam o sono dos festejos. Ganhou a rua e caminhou o curto trajeto dado pela sorte de ter uma casa quase à beira-mar.
Abandonou os calçados, deixou que seus pés afundassem na areia.
O rugido das ondas parecia perguntar o que seria dela. Marcia tirou um por um dos comprimidos e colocou na palma da mão. Logo amanheceria o primeiro dia de um novo ano e ela não esperava nada dele, nenhuma promessa, nenhuma esperança. Não havia motivos para continuar assim.
Fechou a mão cheia de remédios, correu para dentro da água.
Pela primeira vez em muito tempo Marcia tinha uma vontade, um desejo forte, uma certeza. Marcia realmente queria algo.
Numa súbita explosão, como a dos fogos que salpicaram o céu mais cedo, ela tomou uma atitude radical: abriu a mão carregada de comprimidos e lançou ao mar.
Marcia decidiu que aquele seria o melhor ano da vida dela!
quarta-feira, 5 de junho de 2013
O Choque - Evna
[Femme au jardin - Théo van Rysselberghe - 1862-1926]
Era um dia de tédio, como todos os outros naquela época. Tivemos visitas e assim que pude fugi para o jardim com uma revista. Estava distraída quando Mirella chegou.
Ela perguntou se estava tudo bem comigo – já que eu estava lá fora isolada. Respondi que sim, tinha ido só tomar um ar. Mas a verdade é que não estava. Era um dia como qualquer outro, repleto das mesmices que eu estava bem acostumada – e farta – só que eu acordei me sentindo estranha, mais angustiada do que de costume.
Buscou a bolsa e veio sentar-se ali, para continuar seu bordado enquanto conversávamos. Ou melhor, enquanto ela conversaria e eu fingiria algum interesse.
Olhei para Mirella entretida com seus afazeres, comentando qualquer coisa em que eu não estava prestando nenhuma atenção. Ah, como ela era linda! Uma beleza tão lânguida, suave e dramática como das musas do cinema. Sempre a invejei por isso, era muito mais bonita que eu. Sempre foi.
É claro que nunca a deixei saber disso, aliás, nem ela nem ninguém. Confessava no máximo para mim mesma. E muitas vezes me alegrava secretamente por ela ser assim tão tola.
Ironicamente, foi quando ela disse que éramos mulheres de muita sorte, por termos encontrado bons homens e tudo mais, que meu sentimento de frustração aumentou.
Seguiu falando sobre o quanto estava feliz com o casamento recente e com o marido, que era um homem simples, mas honesto e de muitas outras qualidades. E que eu logo também estaria, porque ela soube que Zudrick certamente iria propor algo a meu pai.
Ouvir aquilo foi um choque! Eu, noiva?! Senti como se o chão faltasse aos meus pés, por um momento achei que fosse desmaiar.
É verdade, eu apreciava a adoração que ele tinha por mim. Deixar as esperanças dele se alimentarem foi uma forma que eu encontrei de não chamar a atenção. Mas eu não queria casar com ele! Nem com ele nem com nenhum daqueles homens dali!
Meu mundo foi implodindo e uma realidade óbvia surgiu diante dos meus olhos. Já havia passado muito tempo. Essa era a dura verdade: ele nunca voltaria. Eu estive apenas me iludindo. Todas as desculpas que eu havia me dado durante esse tempo por ele não ter me levado junto logo de partida, ou não ter escrito mais, se desfizeram naquele instante.
Era isso: eu estava condenada! Meus pais adoravam Zudrick, bastava que ele fizesse o pedido e meu destino estaria selado.
Atônita, estava chorando sem perceber. Mirella me abraçava gentilmente e perguntava o porquê. Tratei de me acalmar, disse que fui pega de surpresa e me emocionei, só isso. Não sei se ela acreditou, mas fiz o melhor que pude. Isso também já não tinha importância, em breve eu seria como ela, só que amargurada como aquela doce menina jamais sonharia em ser.
Meus sonhos acabaram de se estilhaçar nas pedras daquela calçada. O que ele queria de mim, já teve. Eu fui muito boba! Ninguém viria me salvar.
A menos que eu... não, – afastei aquele pensamento – isso seria muita loucura. Mas também não poderia existir loucura maior do que viver essa vida pacata de boa esposa! Eu precisava agir logo...
Mesmo o mais raro dos diamantes nunca será uma jóia preciosa enquanto estiver escondido nas paredes da mina.
[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]
O Choque - Mirella
[Young Woman Sewing in a Garden - Berthe Morisot - 1881]
Fomos almoçar na casa dos meus tios e pouco depois de comermos senti falta de minha prima na sala. Perguntei a minha tia, ela disse que Evna devia estar no quarto — ou em algum outro lugar — “entocada”.
— Aconteceu alguma coisa tia?
— Eu não sei, essa menina anda muito estranha ultimamente.
Estava indo bater na porta do quarto quando vi, pela janela, Evna sentada no jardim, com uma revista aberta no colo, olhando para o nada. Devia estar pensando longe, nem viu eu me aproximar. Perguntei se estava bem, por que estava lá fora sozinha? Me disse apenas que queria tomar um ar.
Evna sempre foi de personalidade forte e imprevisível, mas andava mesmo diferente de uns dias pra cá. Distante, calada. No caso, mais calada que o normal, já que nunca escondeu seu desinteresse por nossos assuntos. Aquilo tudo a deixava enfadada, nunca escondeu isso. Mas ficava muito animada se íamos a festas com pessoas de fora ou quando falávamos de moda e de artistas. Mudava completamente de atitude! Acho que como toda jovem, ela também sonhava com aquele fantástico mundo dos filmes.
Busquei meu bordado para continuar enquanto lhe fazia companhia. De repente a percebi me olhando profundamente, sem dizer nada. Mostrei a parte acabada do bordado de flores, perguntei se gostou.
— Uhum – esnobe como sempre. Ah Evna, sempre assim! Ela era diferente, detestava essas coisas de bordar ou cozinhar. Fazia as coisas que era obrigada, e só.
Éramos mulheres de sorte, estava dizendo isso a ela e acabei não resistindo em contar o que soube noutro dia. Talvez não devesse, mas ninguém me pediu segredo e também não era nenhuma novidade. Além do mais, ela estava tão desanimada!
Falei que em breve Zudrick iria pedi-la em noivado. Imediatamente sua feição mudou. Ficou pálida, muda, paralisada, olhando para frente com os olhos arregalados. Parecia estar em choque.
— Evna? – ela não respondeu. Chamei de novo, nada. Pensei até que estivesse passando mal.
Aí uma lágrima escorreu pelo rosto branco, logo depois outra, até que ela desabou num pranto torrencial. Fiquei assustada. Abracei-a, perguntando o que houve. Demorou um pouco para ela se acalmar, daí me disse que foi a surpresa.
Claro, que idéia a minha! Todos nós sabíamos que Evna e Zudrick eram apaixonados e iam acabar se casando. Mas não se dá uma notícia dessas assim, é sempre muita emoção para uma moça saber disso. Devia ter contado com mais jeito. Quem diria que debaixo dessa casca toda existia uma menina sonhadora e romântica!
Logo ela já parecia bem, ainda silenciosa, mas animada e com olhos vivazes. Pediu licença e foi lavar o rosto.
Voltei para os meus pontos, acho que apesar do susto ela ficou feliz, e eu também: este bordado estava ficando lindo!
[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]
segunda-feira, 15 de abril de 2013
Parisienne
O antigo depósito de velharias, na parte mais alta do edifício, fora também convertido em dormitório desde que o lugar tornara-se pensão. Para alcançá-lo havia uma penosa escada pelo lado de fora. Agradou-lhe este, mesmo assim.
O papel de parede rosa, rudemente aplicado, disputava espaço com o cinza das infiltrações, manchas aquareladas que aumentavam a cada chuva. O cheiro da umidade constante era camuflado sob o aroma dos perfumes baratos que ela espalhava por tudo.
A mobília era um conjunto de itens corroídos pelo tempo, esquecidos ali por não terem mais utilidade ou por estarem quebrados. Tal como o velho lustre que ela encontrou soterrado entre a muamba e aquele rapaz, gentilmente, prontificou-se a instalar no lugar da deprimente lâmpada que pendia solitária do teto.
Entre esses móveis , totalmente fora de época, um era especial: o toucador. Daqueles com um grande espelho oval – manchado – e uma banqueta com rasgos no estofado. Ali estavam depositados os artifícios da sua vaidade. Seu primeiro camarim.
O guarda-roupa – assustadoramente grande para o vazio dos seus pertences – aos poucos era preenchido com a generosidade dos franceses.
Acima da cabeceira da velha cama, ao invés da figura de algum santo para proteger-lhe, os rostos glamourosos de Bardot, Deneuve e Taylor compunham sua trindade mais que santíssima.
Dentro do baú grande de madeira, debaixo de muitas revistas, sepultou as lembranças que trouxera consigo. E sobre este, na vitrola, os clássicos de Piaf embalavam a afirmação de sua identidade de moça parisiense.
A pequena janela que se abria dali para o mundo, respiro único da rosada clausura, deixava ver lá longe, em meio ao tapete de telhados, a imponente Dama de Ferro. Pudera ter escolhido entre outros, inclusive melhores, mas este era o único de onde podia assistir a Dama-Torre reinar absoluta sobre a cidade. Eiffel, lindo nome.
Jamais se perderia à deriva nesse mar de incertezas, pois seu farol orientador estava sempre lá. Poder acordar e vê-la dali, era como espiar o sonho pelo buraco da fechadura.
Os degraus lá fora rangeram com a chegada de alguém. Jogou o robe vermelho sobre os ombros, conferiu a aparência no espelho e quando fosse abrir para o visitante, ainda escorada na porta, estenderia a mão numa pose ensaiada: Mademoiselle Eiffel, enchantée.
[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]
O papel de parede rosa, rudemente aplicado, disputava espaço com o cinza das infiltrações, manchas aquareladas que aumentavam a cada chuva. O cheiro da umidade constante era camuflado sob o aroma dos perfumes baratos que ela espalhava por tudo.
A mobília era um conjunto de itens corroídos pelo tempo, esquecidos ali por não terem mais utilidade ou por estarem quebrados. Tal como o velho lustre que ela encontrou soterrado entre a muamba e aquele rapaz, gentilmente, prontificou-se a instalar no lugar da deprimente lâmpada que pendia solitária do teto.
Entre esses móveis , totalmente fora de época, um era especial: o toucador. Daqueles com um grande espelho oval – manchado – e uma banqueta com rasgos no estofado. Ali estavam depositados os artifícios da sua vaidade. Seu primeiro camarim.
O guarda-roupa – assustadoramente grande para o vazio dos seus pertences – aos poucos era preenchido com a generosidade dos franceses.
Acima da cabeceira da velha cama, ao invés da figura de algum santo para proteger-lhe, os rostos glamourosos de Bardot, Deneuve e Taylor compunham sua trindade mais que santíssima.
Dentro do baú grande de madeira, debaixo de muitas revistas, sepultou as lembranças que trouxera consigo. E sobre este, na vitrola, os clássicos de Piaf embalavam a afirmação de sua identidade de moça parisiense.
A pequena janela que se abria dali para o mundo, respiro único da rosada clausura, deixava ver lá longe, em meio ao tapete de telhados, a imponente Dama de Ferro. Pudera ter escolhido entre outros, inclusive melhores, mas este era o único de onde podia assistir a Dama-Torre reinar absoluta sobre a cidade. Eiffel, lindo nome.
Jamais se perderia à deriva nesse mar de incertezas, pois seu farol orientador estava sempre lá. Poder acordar e vê-la dali, era como espiar o sonho pelo buraco da fechadura.
Os degraus lá fora rangeram com a chegada de alguém. Jogou o robe vermelho sobre os ombros, conferiu a aparência no espelho e quando fosse abrir para o visitante, ainda escorada na porta, estenderia a mão numa pose ensaiada: Mademoiselle Eiffel, enchantée.
[Este texto faz parte de um exercício proposto na Oficina de Iniciação a Criação Literária, a qual estou participando, ministrada pelo excelente professor Robertson Frizeiro.]
domingo, 25 de novembro de 2012
Adash, um ano de saudade
Faz exatamente um ano que eu recebi a pior notícia que eu poderia receber. Perdi meu chão, meus sonhos desabaram, minha vida virou de pernas pro ar, quando a morte levou a pessoa que eu mais amei no mundo, junto com uma boa parte de mim.
Há mais ou menos 12 anos atrás Adash entrou definitivamente na minha vida fazendo uma pergunta para qual só havia uma resposta. Há um ano ele se foi desse mundo me deixando com inúmeras perguntas sem resposta.
Um ano às vezes é pouco. Um ano às vezes é muito.
Um ano é muito pra conviver dia após dia com a ausência de alguém que você ama.
Um ano é pouco pra acostumar, aceitar e dizer que está “tudo bem”. Ainda é impossível ver qualquer coisa dele sem sentir um aperto.
Eu que por vezes senti apenas saudades de algumas pessoas, mas sempre me vangloriei de não sentir a falta de ninguém. Hoje sinto, ainda, muito a falta dele.
Não sei exatamente como eu passei por isso, sei que sobrevivi. Só porque não havia outra opção. Faz um ano que tudo que eu faço é pra me distrair dessa ausência e continuar.
Lembro que minha mãe quando por algum motivo lembrava do marido falecido chorava muito. Eu não entendia como que depois de tanto tempo – mais de vinte anos – ela ainda podia sentir tanto. Hoje eu entendo perfeitamente: para algumas coisas o tempo não significa nada.
Ainda há poucos dias eu encontrei nos escritos dele uma carta de tempos atrás que ele nunca me entregou. É impressionante como aquelas palavras fizeram muito mais sentido depois disso tudo ter acontecido do que fariam na época que ele escreveu.
As últimas palavras dele que eu ouvi foram: “Ti amuuuu”. Esse dia vai ficar pra sempre marcado na minha memória.
E hoje faz um ano.
Mas hoje é só um dia, em um ano. E um ano é muito, um ano é pouco...
Esteja em paz meu amor!
Te vejo em breve.
Há mais ou menos 12 anos atrás Adash entrou definitivamente na minha vida fazendo uma pergunta para qual só havia uma resposta. Há um ano ele se foi desse mundo me deixando com inúmeras perguntas sem resposta.
Um ano às vezes é pouco. Um ano às vezes é muito.
Um ano é muito pra conviver dia após dia com a ausência de alguém que você ama.
Um ano é pouco pra acostumar, aceitar e dizer que está “tudo bem”. Ainda é impossível ver qualquer coisa dele sem sentir um aperto.
Eu que por vezes senti apenas saudades de algumas pessoas, mas sempre me vangloriei de não sentir a falta de ninguém. Hoje sinto, ainda, muito a falta dele.
Não sei exatamente como eu passei por isso, sei que sobrevivi. Só porque não havia outra opção. Faz um ano que tudo que eu faço é pra me distrair dessa ausência e continuar.
Lembro que minha mãe quando por algum motivo lembrava do marido falecido chorava muito. Eu não entendia como que depois de tanto tempo – mais de vinte anos – ela ainda podia sentir tanto. Hoje eu entendo perfeitamente: para algumas coisas o tempo não significa nada.
Ainda há poucos dias eu encontrei nos escritos dele uma carta de tempos atrás que ele nunca me entregou. É impressionante como aquelas palavras fizeram muito mais sentido depois disso tudo ter acontecido do que fariam na época que ele escreveu.
As últimas palavras dele que eu ouvi foram: “Ti amuuuu”. Esse dia vai ficar pra sempre marcado na minha memória.
E hoje faz um ano.
Mas hoje é só um dia, em um ano. E um ano é muito, um ano é pouco...
Esteja em paz meu amor!
Te vejo em breve.
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Piracicaba, o início da Ditadura Cristã no Brasil
Foi com grande estarrecimento, seguido de profunda indignação, que tomei conhecimento das notícias citadas logo abaixo. Vi-as na página do facebook de uma amiga, que assim como eu, teme ao assistir o início fatídico da instauração da Ditadura Evangélico-Cristã no Brasil.
Não que isso seja grande surpresa, pois há tempos vimos presenciando movimentos e articulações nesse sentido acontecendo em diversas partes do país.
Há tempos que o Estado, que nunca foi realmente laico, ameaça perder seus últimos poucos traços de laicidade. Há tempos que esses movimentos deixaram de limitar-se ao âmbito religioso pra interferir diretamente na política, e por consequência nas leis e no Poder Público, impondo pouco a pouco o fundamentalismo dos seus dogmas para a sociedade.
Mas pela primeira vez um fato indiscutível é registrado e noticiado por jornais e programas de televisão.
Um regimento está nos sendo empurrado goela abaixo! E nele consta que tudo quanto não esteja de acordo com os interesses ou fuja do padrão imposto pelas religiões evangélicas será, inicialmente atacado, pra depois ser reprimido e em seguida perseguido, como bem se pode ver nas notícias que seguem.
Isso aconteceu aonde? Lá mesmo! Na cidade chamada Piracicaba. Lembra dela? Não faz muito tempo que ela foi palco da tentativa de se instituir uma lei municipal (proibindo sacrifício animal) que impedia diretamente a continuidade das atividades dos terreiros de candomblé na cidade, sob pena de multa.
Àqueles que há pouco tempo atrás reviravam os olhos e viam como exagerada as prenuncias de que estaríamos caminhando para a formação da República Evangélico-Fundamentalista-Cristã do Brasil, eu peço a gentileza de olharem as notícias abaixo e me explicarem o que pode estar acontecendo, se não exatamente isso?
Noticia no Jornal de Piracicaba
Notícia no site G1-São Paulo
Será que você viu a mesma coisa que eu?!
Vamos recapitular: um cidadão, no pleno exercício dos seus direitos, se nega a levantar-se para a leitura de um trecho da bíblia, durante a abertura de uma sessão da Câmara dos Vereadores de uma cidade. Diante disso, é solicitado que ele se retire do recinto. Ele, novamente no exercício dos seus direitos, se recusa a sair. Então é acionado o uso de força militar para retirá-lo dali. Sob o argumento de que ele estaria comprometendo a segurança da sessão.
Confesso que eu estou pasmo! Mas espere, vamos do começo:
1- Por que motivo é instituída a leitura de um trecho da bíblia na abertura de uma sessão da Câmara? Baseado em quê? Desde quando isso é necessário, apropriado ou mesmo cabível em uma audiência de um órgão público? Por acaso a bíblia tornou-se a Nova Constituição ou algum outro livro de leis reconhecidas pelo Estado e ninguém avisou a população?
2- Quando foi que cerimônias de cunho religioso passaram a ter status de solenidade, repito, em ambientes do PODER PÚBLICO? Para que a pessoa que se negar a ficar de pé seja vista e tratada da mesma forma como que se negasse a fazer o mesmo na execução do Hino Nacional? Não me admirará se este último for revisto e ganhar algum teor “gospel” em breve!
3- Que tipo de risco à segurança estava apresentando aquele cidadão que, bem se pode ver no vídeo, estava desarmado e sentado no plenário? O que justifica ele ser retirado contra vontade por policiais dali?
4- Qual o motivo do incômodo com o rapaz que estava registrando o ocorrido, já que supostamente estava-se “somente cumprindo as ordens do Presidente em conformidade com o regimento interno da casa”?
5- Como é que vereadores/militares/funcionários/etc assistem a uma barbaridade dessas passivamente?
Talvez todas essas perguntas respondam-se num único sentido: o brasileiro é altamente desincentivado a conhecer as leis que regem sua vida particular, pois isso acarretaria inúmeros problemas para a classe governante. Mas é obrigado a doutrinar-se pela bíblia e pelos princípios, ditos “cristãos”, já que estes pregam obediência cega e submissão, que convenhamos, é muito mais interessante para quem nos governa nesse ritmo de total desrespeito.
A liberdade individual vem sendo sumariamente cerceada por esse movimento. O seu direito de livre credo e culto está sob ataque constante. Sejam quais forem as suas opções de vida, uma vez que sejam contrárias a esses ideais, em breve deixarão de ser apenas “mal vistas”, alvo de preconceito incitado e propagado livremente, para serem então “contra a lei”. Qual lei? A que está valendo: a lei da alienação evangélico-pentecostal-bíblico-fundamentalista-cristã!
Nós, os que estamos dentro do exercício dos nossos direitos garantidos por lei, mas fora do padrão que está sendo imposto por religiosos no âmbito público desse país, precisamos nos manifestar, e logo!
No silêncio da nossa indiferença, o monstro de uma nova ditadura está nascendo e acabará por devorar de vez a frágil liberdade que temos...
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
Vem, o tempo urge!
Sou acordado pelo estranho som de passos lentos, que se arrastam em minha direção. O ar está pesado, enegrecido, intoxicante. Cheira a mofo, velho, morto... Respirar dói.
Meu corpo jaz inerte, denso como chumbo. Mover-me exige muito esforço. O leito é conhecido, mas tenho certeza de que nunca o vi. Será que ainda durmo?
O vulto negro se aproxima. Meus olhos entorpecidos não distinguem dele mais do que uma figura embaçada.
O cabo da foice, que me golpeia a espalda, por fim me desperta. E junto dele o som trovejante daquela voz quase metálica: “Vamos acorde! Eu voltei!”
Meus ossos doem. Parece que são estes, ao invés dos ouvidos, que escutam e estremecem com aquela terrível voz! Que prossegue resmungando:
“Ainda assim, sempre sonhando...”
Levantando-me com esforço, posso agora distinguir melhor aquela figura cinzenta que segue lentamente até a mesa posta logo ali. Olho em volta, na busca instintiva de reconhecer o ambiente. Discorrem alguns momentos até que minha mente consiga compreender o que está ocorrendo.
No reduto aposento do meu interno, coisas se acumulam por todos os lados. O Velho desvia das minhas lembranças espalhadas pelo chão, o pé esquelético arrastando-as para fora do seu caminho, num gesto de total desdém. Não, ele não se importa com elas.
Meneando a cabeça desaprovadoramente, ele afasta para o lado algumas outras coisas que ocupam a mesa, me dizendo:
“Quanta porcaria tem guardado! O que pensa que vai fazer com tudo isso?”
Ai, que voz terrível ele tem! É a voz do tempo, que sussurra ecos do passado nos ouvidos da consciência. Ouvi-la é sentir a devastação do quanto já se passou, de quanto dele se perdeu, de tudo que não se fez. A frustração de tudo quanto poderia ter sido, mas não foi e já não poderá mais vir a ser, simplesmente porque o momento certo se perdeu, repetidas vezes.
Não respondo a pergunta pendente, pois esta dispensa réplicas. A maior inquietação está no que a presença dele aqui significa: Saturno retorna. Um ciclo todo se cumpriu. O tempo passou. A hora da verdade chega. O tribunal está instaurado e aquela pergunta inquisidora é inevitável: o que eu fiz desse tempo todo?
“Vem, o tempo urge!” – intima-me, pousando uma ampulheta sobre a mesa.
“O Senhor do Tempo tem pressa. Que ironia!” – digo ao me sentar diante dele.
Não aprecio sua visita. Desprezo-o, não nego. Não vejo em sua presença nada além de opressão e sofrimento. Após um breve instante de silêncio, Saturno retoma o assunto como que querendo mostrar-se interessado:
“Então, o que tem feito?”
“Vivido.”
“Claro.”
“Com alguns percalços... mas dizem que o tempo cura tudo, não é?”
“Não sei. Dizem isso?” – devolve, fitando-me profundamente.
Eu ainda não tinha atentado para aqueles olhos, verdadeiros abismos feitos de um negrume vazio. Buracos negros a consumir tudo que viram. Seu olhar enigmático me atravessa, percorrendo-me a alma. Até que, assumindo um tom grave, ele diz:
“Tenho fome.”
“Fome? Como assim?” – indago confuso.
A resposta surge num gesto surpreendentemente ágil pra aquela aparente morbidez. O Velho crava a mão ossuda no meu peito, invadindo-o. Terror! O choque me petrifica.
“Vamos ver o que temos aqui.” – diz ele, enquanto remexe dentro de mim como quem procura coisas numa bolsa. Saturno quer saciar sua fome alimentando-se das minhas experiências.
À medida que sua busca prossegue, cenas minhas são revividas, memórias obscuras já esquecidas no passado voltam à tona, um filme passa na minha cabeça.
“Sempre as mesmas coisas...” – resmunga, tomando uma ou outra forma estranha e mastigando-as aborrecido.
“O que você esperava? Foste cruel comigo!” – respondo revoltado.
“Criança tola, não entende que é a poda que permite crescer?!”
Não, não entendo. Só sinto o peso daquela presença, a dor do meu peito sendo dilacerado naquela cena insólita.
“Ah!” – anima-se de repente –“Ao menos conheceu o amor!”
Levando à boca aquela forma delicada, parece-me que alguma vida começa a preencher o olhar enegrecido. Devora-a avidamente com uma expressão de deleite.
“Fale-me dos seus sonhos.”
“Para que? Você irá destruí-los de qualquer forma.”
“Destruir? Não!” – replica espantado – “Sou eu que te cedo a chance de realizá-los!”
Permaneço olhando-o sem entender a afirmação. Estranhamente noto que aquela figura temível e assombrosa começa a querer ganhar ares mais agradáveis, alguma beleza parece surgir aos poucos naquele semblante antes tão sombrio. Pacientemente ele explica:
“Só a consciência da finitude traz sentido real às coisas. Faz com que valham a pena. É a visão dos limites que faz com que se possa realizar algo. Lança as bases para uma construção concreta. O tempo passa levando embora as ilusões. Só o que é real permanece. O que é verdade em você se mantém intacto. Aquilo de há de mais forte em você é o verdadeiro. O que realmente te move, te constitui e te define, é intocável. O resto sucumbe. Afinal, do que você é feito? Essa é a pergunta que eu trago!”
Estou perplexo. Sinto-me absolutamente pequeno nesse momento. Tenho vergonha de ter tamanha ignorância. Ele prossegue enfático:
“Tuas ilusões e anseios desmedidos é que te podem frustrar. Volto pra te lembrar da tua humanidade e de toda a satisfação que se pode alcançar dentro desta condição limitada. Todo o resto pode te mentir, eu apenas trago a verdade.”
E a verdade liberta! Esse entendimento aniquila todo o peso que eu estava sentindo. A forma horrorosa que eu via nele transmutou-se numa beleza tenaz. Lembrar de ser apenas humano, nada mais. A certeza da finitude é uma benção. Sou tomado por uma sensação de relaxamento, prazerosa, às beiradas do sono.
“Descanse, eu logo vou. Estou só de passagem. Você também.”
Vejo o fio de areia escorrendo continuamente na ampulheta sobre a mesa. A pergunta me transborda pela boca:
“Ainda tenho tempo?”
“Talvez. Não o desperdice mais.”
Minhas pálpebras pesam, não há como resistir a corrente de tranquilidade que me invade. Não há por que resistir. A última coisa que ainda consigo ouvir antes de desligar completamente, é carregada de um sotaque peculiar, em tom jocoso:
“Carpe Diem...”
[Meu abraço faterno a todos aqueles que estão passando ou vão passar em breve pelo retorno de Saturno.]
Meu corpo jaz inerte, denso como chumbo. Mover-me exige muito esforço. O leito é conhecido, mas tenho certeza de que nunca o vi. Será que ainda durmo?
O vulto negro se aproxima. Meus olhos entorpecidos não distinguem dele mais do que uma figura embaçada.
O cabo da foice, que me golpeia a espalda, por fim me desperta. E junto dele o som trovejante daquela voz quase metálica: “Vamos acorde! Eu voltei!”
Meus ossos doem. Parece que são estes, ao invés dos ouvidos, que escutam e estremecem com aquela terrível voz! Que prossegue resmungando:
“Ainda assim, sempre sonhando...”
Levantando-me com esforço, posso agora distinguir melhor aquela figura cinzenta que segue lentamente até a mesa posta logo ali. Olho em volta, na busca instintiva de reconhecer o ambiente. Discorrem alguns momentos até que minha mente consiga compreender o que está ocorrendo.
No reduto aposento do meu interno, coisas se acumulam por todos os lados. O Velho desvia das minhas lembranças espalhadas pelo chão, o pé esquelético arrastando-as para fora do seu caminho, num gesto de total desdém. Não, ele não se importa com elas.
Meneando a cabeça desaprovadoramente, ele afasta para o lado algumas outras coisas que ocupam a mesa, me dizendo:
“Quanta porcaria tem guardado! O que pensa que vai fazer com tudo isso?”
Ai, que voz terrível ele tem! É a voz do tempo, que sussurra ecos do passado nos ouvidos da consciência. Ouvi-la é sentir a devastação do quanto já se passou, de quanto dele se perdeu, de tudo que não se fez. A frustração de tudo quanto poderia ter sido, mas não foi e já não poderá mais vir a ser, simplesmente porque o momento certo se perdeu, repetidas vezes.
Não respondo a pergunta pendente, pois esta dispensa réplicas. A maior inquietação está no que a presença dele aqui significa: Saturno retorna. Um ciclo todo se cumpriu. O tempo passou. A hora da verdade chega. O tribunal está instaurado e aquela pergunta inquisidora é inevitável: o que eu fiz desse tempo todo?
“Vem, o tempo urge!” – intima-me, pousando uma ampulheta sobre a mesa.
“O Senhor do Tempo tem pressa. Que ironia!” – digo ao me sentar diante dele.
Não aprecio sua visita. Desprezo-o, não nego. Não vejo em sua presença nada além de opressão e sofrimento. Após um breve instante de silêncio, Saturno retoma o assunto como que querendo mostrar-se interessado:
“Então, o que tem feito?”
“Vivido.”
“Claro.”
“Com alguns percalços... mas dizem que o tempo cura tudo, não é?”
“Não sei. Dizem isso?” – devolve, fitando-me profundamente.
Eu ainda não tinha atentado para aqueles olhos, verdadeiros abismos feitos de um negrume vazio. Buracos negros a consumir tudo que viram. Seu olhar enigmático me atravessa, percorrendo-me a alma. Até que, assumindo um tom grave, ele diz:
“Tenho fome.”
“Fome? Como assim?” – indago confuso.
A resposta surge num gesto surpreendentemente ágil pra aquela aparente morbidez. O Velho crava a mão ossuda no meu peito, invadindo-o. Terror! O choque me petrifica.
“Vamos ver o que temos aqui.” – diz ele, enquanto remexe dentro de mim como quem procura coisas numa bolsa. Saturno quer saciar sua fome alimentando-se das minhas experiências.
À medida que sua busca prossegue, cenas minhas são revividas, memórias obscuras já esquecidas no passado voltam à tona, um filme passa na minha cabeça.
“Sempre as mesmas coisas...” – resmunga, tomando uma ou outra forma estranha e mastigando-as aborrecido.
“O que você esperava? Foste cruel comigo!” – respondo revoltado.
“Criança tola, não entende que é a poda que permite crescer?!”
Não, não entendo. Só sinto o peso daquela presença, a dor do meu peito sendo dilacerado naquela cena insólita.
“Ah!” – anima-se de repente –“Ao menos conheceu o amor!”
Levando à boca aquela forma delicada, parece-me que alguma vida começa a preencher o olhar enegrecido. Devora-a avidamente com uma expressão de deleite.
“Fale-me dos seus sonhos.”
“Para que? Você irá destruí-los de qualquer forma.”
“Destruir? Não!” – replica espantado – “Sou eu que te cedo a chance de realizá-los!”
Permaneço olhando-o sem entender a afirmação. Estranhamente noto que aquela figura temível e assombrosa começa a querer ganhar ares mais agradáveis, alguma beleza parece surgir aos poucos naquele semblante antes tão sombrio. Pacientemente ele explica:
“Só a consciência da finitude traz sentido real às coisas. Faz com que valham a pena. É a visão dos limites que faz com que se possa realizar algo. Lança as bases para uma construção concreta. O tempo passa levando embora as ilusões. Só o que é real permanece. O que é verdade em você se mantém intacto. Aquilo de há de mais forte em você é o verdadeiro. O que realmente te move, te constitui e te define, é intocável. O resto sucumbe. Afinal, do que você é feito? Essa é a pergunta que eu trago!”
Estou perplexo. Sinto-me absolutamente pequeno nesse momento. Tenho vergonha de ter tamanha ignorância. Ele prossegue enfático:
“Tuas ilusões e anseios desmedidos é que te podem frustrar. Volto pra te lembrar da tua humanidade e de toda a satisfação que se pode alcançar dentro desta condição limitada. Todo o resto pode te mentir, eu apenas trago a verdade.”
E a verdade liberta! Esse entendimento aniquila todo o peso que eu estava sentindo. A forma horrorosa que eu via nele transmutou-se numa beleza tenaz. Lembrar de ser apenas humano, nada mais. A certeza da finitude é uma benção. Sou tomado por uma sensação de relaxamento, prazerosa, às beiradas do sono.
“Descanse, eu logo vou. Estou só de passagem. Você também.”
Vejo o fio de areia escorrendo continuamente na ampulheta sobre a mesa. A pergunta me transborda pela boca:
“Ainda tenho tempo?”
“Talvez. Não o desperdice mais.”
Minhas pálpebras pesam, não há como resistir a corrente de tranquilidade que me invade. Não há por que resistir. A última coisa que ainda consigo ouvir antes de desligar completamente, é carregada de um sotaque peculiar, em tom jocoso:
“Carpe Diem...”
[Meu abraço faterno a todos aqueles que estão passando ou vão passar em breve pelo retorno de Saturno.]
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
Velut Luna - Parte I
Desde sempre a Lua exerce um grande fascínio sobre a humanidade. Sobre mim, em particular, tanto mais. E isso vem se acentuando no decorrer deste ano regido por ela.
Entre todos os povos, religiosa ou apenas culturalmente, há a associação de uma série de conceitos com a Lua e a crença de que ela possa influenciar as coisas sobre a Terra. O binário Sol/Lua é análogo a todos os conceitos de opostos complementares que conhecemos, inclusive e especialmente à ideia de gênero.
Enquanto o Sol, governante da luminosidade do dia, verdadeira fonte da energia e calor que sustenta a vida, é associado a valores como: positivo, masculino, ativo, razão, lógica, força, vigor, objetividade, consciência, lucidez, estabilidade, etc.
À Lua, senhora da noite que nos ilude com cálidos raios prateados que não são seus, se faz toda a atribuição oposta: negativo, feminino, passivo, emoção, intuição, fragilidade, fraqueza, subjetividade, inconsciência, devaneio, variabilidade, etc.
Por isso, é a Lua/Noite que se costuma relacionar tudo aquilo que não é regrado, ordinário. Como certos tipos de estado/temperamento: a Lua dos apaixonados, românticos, sensíveis, artistas, boêmios, loucos, desajustados, etc. Além, claro, das fantásticas criaturas das trevas: vampiros, lobisomens, fantasmas e assemelhados.
Na própria língua se percebe isso claramente quando não raro ouvimos algumas expressões comuns:
“Fulano é de Lua” – para expressar que é uma pessoa de humor imprevisível.
“Fulano vive no mundo da Lua” – pra indicar que a pessoa é sonhadora, desligada, fora da realidade.
“Fulano nasceu com a bunda virada pra Lua” – para dizer que alguém tem muita sorte.
“Lunático” – sinônimo para louco, insano.
Talvez a mais intrínseca de todas seja a ideia de inconstância/variação, motivada especialmente pela Lua aparecer em constante mudança no nosso céu. São as famosas “fases”.
Inerente a essa alternância das fases, existe a crença de que a influência da Lua, dependendo da fase em que encontra, possa ser favorável ou não aquilo que se vá fazer.
Todo mundo conhece a história aquela que na Nova as coisas se renovam, na Crescente crescem, na Cheia ganham o máximo de amplitude e na Minguante diminuem. Deste modo, diz-se que a Lua atua sobre a geração, formação e o desenvolvimento de todas as coisas na Terra. Por isso é comum se observar as fases antes de realizar plantios, podas e colheitas das plantas. De cortar cabelos e unhas. Diz-se também que a troca da Lua precipita o nascimento em gestações avançadas.
Confesso que fiquei bastante surpreso, ou talvez decepcionado, ao descobrir que nenhuma dessas crenças populares em torno da Lua tem validação científica. Nenhuma!
Mas o número de partos não aumenta na Lua Cheia? Não. Pelo menos nada que pudesse se constatar estatisticamente.
Mas e as plantas não nascem e dão frutos melhores se plantarmos na Lua certa? Pois é, não. Pesquisadores vêm testando Luas plantios em Luas "boas" e "ruins" e não deu diferença nos resultados.
E os lobos que uivam pra Lua cheia? Pois é, não é pra Lua que eles uivam. É para chamar outros lobos pra caça, para demarcar território caso estejam sendo invadidos, pra se comunicar. E não é na Lua cheia, é em todas. A cheia só é mais badalada porque a luminosidade dela favorece a caçada noturna, só isso.
Decepcionante, não? É a Lua novamente nos lançando ilusões!
A única exceção são as marés, só. E ainda assim tem muito mais a ver com o aumento da força gravitacional do Sol do que com a Lua em si.
Mas aí eu lembrei que tomar banho de sal grosso ou plantar arruda na frente de casa também não possui nenhuma validade científica e deixei isso pra lá.
O fato é que sempre percebi uma mudança drástica e involuntária no meu humor em um determinado período do mês. Costumava brincar que se eu fosse mulher esse seria meu período menstrual!
Até que há alguns dias atrás, casualmente ajudando uma amiga a programar uma espécie de encantamento de acordo com a Lua, percebi que esses altos e baixos coincidiam com as mudanças de fase lunar.
Isso automaticamente me lembrou de uma música lindíssima, entitulada "Hijo de la Luna", originalmente da banda espanhola Mecano, que ganhou numerosas versões e eu acabei conhecendo na voz de Sarah Brightman.
[Letra e tradução disponíveis aqui.]
A música conta a história de uma cigana que pede à Lua por um marido. A Lua por sua vez propõe lhe conceder o desejo, desde que a cigana lhe entregue o primeiro filho do casal. A cigana questiona no refrão o que a Lua de Prata, que quer ser mãe mas não pode, fará com uma criança de pele? A Lua diz que se a mulher está disposta a trocar o filho por um marido, é porque não o amará realmente.
A cigana se casa com seu sonhado cigano e quando a criança nasce, ao invés de morena como os pais, é branca de olhos cinzentos. O cigano enfurecido acreditando ter sido traído mata a mulher a abandona a criança no alto da montanha.
A canção finaliza dizendo que quando a Lua está cheia é porque a criança está bem. E que quando chora, a Lua então míngua para lhe fazer um berço.
“Nossa, que lindo! Sou como o tal hijo de la luna!” – poderia pensar eu. Mas não, na verdade sou apenas desequilibrado.
Ignorando minha natural tendência pagã e todos os aspectos astrológicos formados pela Lua no meu mapa, posso me ater somente ao signo e isso me levará ao arcano XVIII – A Lua do tarô.
[Arcano XVIII - A Lua - Cosmic Tarot]
Que era onde eu pretendia chegar desde o princípio, mas a postagem acabou ficando muito extensa, então deixo para a próxima parte.
Entre todos os povos, religiosa ou apenas culturalmente, há a associação de uma série de conceitos com a Lua e a crença de que ela possa influenciar as coisas sobre a Terra. O binário Sol/Lua é análogo a todos os conceitos de opostos complementares que conhecemos, inclusive e especialmente à ideia de gênero.
Enquanto o Sol, governante da luminosidade do dia, verdadeira fonte da energia e calor que sustenta a vida, é associado a valores como: positivo, masculino, ativo, razão, lógica, força, vigor, objetividade, consciência, lucidez, estabilidade, etc.
À Lua, senhora da noite que nos ilude com cálidos raios prateados que não são seus, se faz toda a atribuição oposta: negativo, feminino, passivo, emoção, intuição, fragilidade, fraqueza, subjetividade, inconsciência, devaneio, variabilidade, etc.
Por isso, é a Lua/Noite que se costuma relacionar tudo aquilo que não é regrado, ordinário. Como certos tipos de estado/temperamento: a Lua dos apaixonados, românticos, sensíveis, artistas, boêmios, loucos, desajustados, etc. Além, claro, das fantásticas criaturas das trevas: vampiros, lobisomens, fantasmas e assemelhados.
Na própria língua se percebe isso claramente quando não raro ouvimos algumas expressões comuns:
“Fulano é de Lua” – para expressar que é uma pessoa de humor imprevisível.
“Fulano vive no mundo da Lua” – pra indicar que a pessoa é sonhadora, desligada, fora da realidade.
“Fulano nasceu com a bunda virada pra Lua” – para dizer que alguém tem muita sorte.
“Lunático” – sinônimo para louco, insano.
Talvez a mais intrínseca de todas seja a ideia de inconstância/variação, motivada especialmente pela Lua aparecer em constante mudança no nosso céu. São as famosas “fases”.
Inerente a essa alternância das fases, existe a crença de que a influência da Lua, dependendo da fase em que encontra, possa ser favorável ou não aquilo que se vá fazer.
Todo mundo conhece a história aquela que na Nova as coisas se renovam, na Crescente crescem, na Cheia ganham o máximo de amplitude e na Minguante diminuem. Deste modo, diz-se que a Lua atua sobre a geração, formação e o desenvolvimento de todas as coisas na Terra. Por isso é comum se observar as fases antes de realizar plantios, podas e colheitas das plantas. De cortar cabelos e unhas. Diz-se também que a troca da Lua precipita o nascimento em gestações avançadas.
Confesso que fiquei bastante surpreso, ou talvez decepcionado, ao descobrir que nenhuma dessas crenças populares em torno da Lua tem validação científica. Nenhuma!
Mas o número de partos não aumenta na Lua Cheia? Não. Pelo menos nada que pudesse se constatar estatisticamente.
Mas e as plantas não nascem e dão frutos melhores se plantarmos na Lua certa? Pois é, não. Pesquisadores vêm testando Luas plantios em Luas "boas" e "ruins" e não deu diferença nos resultados.
E os lobos que uivam pra Lua cheia? Pois é, não é pra Lua que eles uivam. É para chamar outros lobos pra caça, para demarcar território caso estejam sendo invadidos, pra se comunicar. E não é na Lua cheia, é em todas. A cheia só é mais badalada porque a luminosidade dela favorece a caçada noturna, só isso.
Decepcionante, não? É a Lua novamente nos lançando ilusões!
A única exceção são as marés, só. E ainda assim tem muito mais a ver com o aumento da força gravitacional do Sol do que com a Lua em si.
Mas aí eu lembrei que tomar banho de sal grosso ou plantar arruda na frente de casa também não possui nenhuma validade científica e deixei isso pra lá.
O fato é que sempre percebi uma mudança drástica e involuntária no meu humor em um determinado período do mês. Costumava brincar que se eu fosse mulher esse seria meu período menstrual!
Até que há alguns dias atrás, casualmente ajudando uma amiga a programar uma espécie de encantamento de acordo com a Lua, percebi que esses altos e baixos coincidiam com as mudanças de fase lunar.
Isso automaticamente me lembrou de uma música lindíssima, entitulada "Hijo de la Luna", originalmente da banda espanhola Mecano, que ganhou numerosas versões e eu acabei conhecendo na voz de Sarah Brightman.
[Letra e tradução disponíveis aqui.]
A música conta a história de uma cigana que pede à Lua por um marido. A Lua por sua vez propõe lhe conceder o desejo, desde que a cigana lhe entregue o primeiro filho do casal. A cigana questiona no refrão o que a Lua de Prata, que quer ser mãe mas não pode, fará com uma criança de pele? A Lua diz que se a mulher está disposta a trocar o filho por um marido, é porque não o amará realmente.
A cigana se casa com seu sonhado cigano e quando a criança nasce, ao invés de morena como os pais, é branca de olhos cinzentos. O cigano enfurecido acreditando ter sido traído mata a mulher a abandona a criança no alto da montanha.
A canção finaliza dizendo que quando a Lua está cheia é porque a criança está bem. E que quando chora, a Lua então míngua para lhe fazer um berço.
“Nossa, que lindo! Sou como o tal hijo de la luna!” – poderia pensar eu. Mas não, na verdade sou apenas desequilibrado.
Ignorando minha natural tendência pagã e todos os aspectos astrológicos formados pela Lua no meu mapa, posso me ater somente ao signo e isso me levará ao arcano XVIII – A Lua do tarô.
[Arcano XVIII - A Lua - Cosmic Tarot]
Que era onde eu pretendia chegar desde o princípio, mas a postagem acabou ficando muito extensa, então deixo para a próxima parte.
quarta-feira, 6 de junho de 2012
Mirror, mirror... on the wall
ATENÇÃO: essa postagem pode conter spoilers!
Foram somente dois fatores que me fizeram querer assistir este filme desde o primeiro anúncio:
1- Ser dos mesmos produtores do Alice in Wonderland (Tim Burton, 2010).
2- Ter uma Rainha Má linda e glamourosa como Charlize Theron.
Não há de se esperar muito de filmes deste tipo. No entanto, essas releituras de contos de fada sempre trazem novos sentidos a elementos da história original e acabam por refletir o que a sociedade está vivendo naquele momento. Foram detalhes deste tipo que mais me chamaram atenção ao assistir o filme.
Antes disso, caberia uma pausa para dizer que a produção realmente faz jus ao esperado, a fotografia, as locações, os efeitos especiais são maravilhosos!
E pra aqueles que, assim como eu, sempre preferem as vilãs, Charlize não decepciona em nada. Na minha opinião o filme poderia muito bem ter se chamado “Ravena - The Evil Queen”.
Mas enfim, o que eu achei interessantíssimo foi o filme ter se focado em um embate que acontece literalmente “entre mulheres”. Valendo-se de pontos muito inerentes ao feminino para desenvolver seu enredo e deixando o papel das figuras masculinas correrem em segundo plano.
Apesar de preservar sua característica geral, parece que a sociedade não entende mais as figuras da Princesa Boazinha e da Rainha Má segundo os velhos moldes, mesmo que seja em um conto desse tipo.
Desta vez, temos uma Rainha/Bruxa Má cuja maldade está fundamentada no desejo de vingança contra o mal causado à sua família/povo pela dominação violenta de um rei velho.
Do outro lado temos uma Princesa, que apesar de dócil, não atende mais ao perfil frágil e romântico dos antigos contos. Ela é uma sobrevivente, que luta corajosamente por seus ideais e culmina a trama reconquistando seu reino perdido vestindo armadura, empunhado espada e escudo e convocando seu povo à guerra.
A ferida de valores implantados pelo patriarcado, como a objetificação da mulher e a rivalidade entre elas, fica explícita o tempo todo na trama. Desde o momento em que, no leito de núpcias, a rainha diz ao rei algo como que as mulheres só têm valor enquanto jovens e bonitas, pois quando ficam velhas são descartadas e entregues aos cães, antes de assassiná-lo. Até o ponto fatídico em que o espelho diz a rainha que seu poder está ameaçado pela beleza de alguém que “hoje torna-se mulher”.
Tudo gira em torno da obsessão por beleza e juventude, representados como que sendo a fonte do “poder” que a rainha tanto persegue. E naquela cena clássica da maçã envenenada ela não usa o disfarce da velhinha. Ao invés disso, transforma-se no próprio “príncipe encantado”, para depois de ludibriar a princesa que sofre as dores do veneno, questionar-lhe se agora percebe como o amor é uma ilusão perigosa. E não, também não é o beijo do príncipe que desfaz o encanto. Pois o filme deixa reis e príncipes relegados a um plano coadjuvante.
No “final feliz” mais um detalhe me surpreendeu: nada de casais apaixonados que “viveram felizes para sempre”. A princesa, que volta da morte para reconquistar seu trono e seu reino, aparece sendo coroada para reinar sozinha. Como soberana única, sem um rei, sem um par, atentando contra o velho dogma da necessidade de um homem para ampará-la.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
Dona Geni, de la Mancha
O horário atípico me deu a oportunidade de encontrar um assento vago no trem de volta. Coisa rara ultimamente.
Apesar disso, o cenário é o mesmo de costume: um grupo de pessoas envolvidas por pensamentos que navegam nas telas espelhadas dos seus celulares ou são orquestrados pelos seus fones de ouvido.
Agrupadas num mesmo espaço/tempo, vivem cada qual a sua realidade particular.
Especialmente por ela, aquela senhora sentada no lado oposto do vagão, conversando com o encosto do banco da frente.
Aparentava ter os seus mais de sessenta anos. Vestia-se sobriamente e tinha cabelos arrumados com o volume típico dos penteados das mulheres da sua geração, tingidos de um castanho profundo que fazia contraste intenso à pele clara.
Chamava-se Geni, mas eu ainda não sabia disso.
Em um tempo incerto, no seu universo particular ela travava uma discussão ferrenha com alguém. Alguém que a ofendeu em um passado recente e por um motivo qualquer ela não revidou na hora, e agora remoia as coisas que deveria ter respondido.
Ou talvez alguém que fosse encontrar para esclarecer uma situação, num futuro próximo, quando chegasse ao seu destino.
Não importava, Geni prosseguia vivenciando intensamente o seu monólogo.
Inquieta, ajeitava-se constantemente no banco, inclinava-se pra frente, agressiva, como se faz comumente para dar ênfase ao que estamos dizendo.
Logo depois recostava-se novamente no banco, puxando a gola do casaco de lã para fechá-lo sobre o peito e acomodar a bolsa no colo para apoiar as mãos.
Geni falava de si com firmeza, colocando a mão sobre o peito, logo acima de onde o tempo e o amamentar dos filhos haviam nivelado seus seios.
Permanecia alguns segundos desse modo, estava ouvindo o que o “outro” dizia. E se não lhe agradava, rebatia. Desfazendo o arranjo num novo gesto enfático.
Por vezes severa, por vezes irônica, as muitas nuances do embate iam emergindo no seu semblante.
Olhava pra fora e balançava a cabeça. Inconformada, dizia a si mesma que isso não poderia ficar assim, de jeito nenhum!
Fez o sinal da cruz quando passamos por uma igreja. Aquilo tudo podia na verdade ser uma oração. Deus era testemunha e estava do seu lado. Geni rogava que lhe desse força, porque ela foi oprimida.
Geni argumentava, gesticulava dando forma ao que estava dizendo e por fim apontava o dedo, na face imaginária do seu interlocutor.
Geni sabia se defender. Quem sabe em um outro tempo, pudesse ter sido uma advogada de renome ou uma implacável promotora de justiça.
Se a vida tivesse sido diferente, mas não foi. Com certeza havia sido muito bonita quando jovem, seus traços do rosto afinados e maçãs elevadas ainda preservavam a sombra dessa beleza que cedeu espaço às marcas de sofrimento que tempo deixou.
Mas a maturidade também lhe trouxe dignidade. Não, ela não se calaria mais! Ali, no imenso espaço existente naquele meio banco que ela ocupava no trem, Geni bradaria como uma leoa!
Porém num tom tão baixo, tão para si mesma, que por nada atrapalharia o raciocínio exigido pelas palavras cruzadas que o senhor ao seu lado preenchia.
Um som inconveniente surgiu para promover alguma trégua a sua batalha interna.
Abriu um tanto atrapalhada o zíper da grande bolsa de couro preto e remexeu até encontrar o aparelho celular.
Ao atender impaciente, identificou-se. Foi quando descobri seu nome.
Falou muito rapidamente sem dar nenhuma brecha pra conversa se desenvolver.
E logo bateu o flip do aparelho e largou de volta na bolsa, demonstrando não dar a menor importância para o que foi dito.
Geni estava injuriada, era fato. Estava escrito na sua expressão.
Como se a pessoa do outro lado tivesse ousado lhe dizer:
“Geni, são apenas moinhos de vento.”
E ela irredutível afirmasse: “Não! São gigantes!” - encerrando a ligação.
Mas o que afinal teria acontecido? Com quem ela estava discutindo tão nervosa? Que tipo de coisa poderia estar a incomodando tanto?
Jamais saberei...
Numa estação qualquer Geni cruzou a porta do vagão e se foi, me privando da verdade.
Fui bruscamente abandonando às minhas próprias projeções sobre ela.
Afinal, cada um de nós vive, sim, a realidade da sua própria percepção.
Apesar disso, o cenário é o mesmo de costume: um grupo de pessoas envolvidas por pensamentos que navegam nas telas espelhadas dos seus celulares ou são orquestrados pelos seus fones de ouvido.
Agrupadas num mesmo espaço/tempo, vivem cada qual a sua realidade particular.
Especialmente por ela, aquela senhora sentada no lado oposto do vagão, conversando com o encosto do banco da frente.
Aparentava ter os seus mais de sessenta anos. Vestia-se sobriamente e tinha cabelos arrumados com o volume típico dos penteados das mulheres da sua geração, tingidos de um castanho profundo que fazia contraste intenso à pele clara.
Chamava-se Geni, mas eu ainda não sabia disso.
Em um tempo incerto, no seu universo particular ela travava uma discussão ferrenha com alguém. Alguém que a ofendeu em um passado recente e por um motivo qualquer ela não revidou na hora, e agora remoia as coisas que deveria ter respondido.
Ou talvez alguém que fosse encontrar para esclarecer uma situação, num futuro próximo, quando chegasse ao seu destino.
Não importava, Geni prosseguia vivenciando intensamente o seu monólogo.
Inquieta, ajeitava-se constantemente no banco, inclinava-se pra frente, agressiva, como se faz comumente para dar ênfase ao que estamos dizendo.
Logo depois recostava-se novamente no banco, puxando a gola do casaco de lã para fechá-lo sobre o peito e acomodar a bolsa no colo para apoiar as mãos.
Geni falava de si com firmeza, colocando a mão sobre o peito, logo acima de onde o tempo e o amamentar dos filhos haviam nivelado seus seios.
Permanecia alguns segundos desse modo, estava ouvindo o que o “outro” dizia. E se não lhe agradava, rebatia. Desfazendo o arranjo num novo gesto enfático.
Por vezes severa, por vezes irônica, as muitas nuances do embate iam emergindo no seu semblante.
Olhava pra fora e balançava a cabeça. Inconformada, dizia a si mesma que isso não poderia ficar assim, de jeito nenhum!
Fez o sinal da cruz quando passamos por uma igreja. Aquilo tudo podia na verdade ser uma oração. Deus era testemunha e estava do seu lado. Geni rogava que lhe desse força, porque ela foi oprimida.
Geni argumentava, gesticulava dando forma ao que estava dizendo e por fim apontava o dedo, na face imaginária do seu interlocutor.
Geni sabia se defender. Quem sabe em um outro tempo, pudesse ter sido uma advogada de renome ou uma implacável promotora de justiça.
Se a vida tivesse sido diferente, mas não foi. Com certeza havia sido muito bonita quando jovem, seus traços do rosto afinados e maçãs elevadas ainda preservavam a sombra dessa beleza que cedeu espaço às marcas de sofrimento que tempo deixou.
Mas a maturidade também lhe trouxe dignidade. Não, ela não se calaria mais! Ali, no imenso espaço existente naquele meio banco que ela ocupava no trem, Geni bradaria como uma leoa!
Porém num tom tão baixo, tão para si mesma, que por nada atrapalharia o raciocínio exigido pelas palavras cruzadas que o senhor ao seu lado preenchia.
Um som inconveniente surgiu para promover alguma trégua a sua batalha interna.
Abriu um tanto atrapalhada o zíper da grande bolsa de couro preto e remexeu até encontrar o aparelho celular.
Ao atender impaciente, identificou-se. Foi quando descobri seu nome.
Falou muito rapidamente sem dar nenhuma brecha pra conversa se desenvolver.
E logo bateu o flip do aparelho e largou de volta na bolsa, demonstrando não dar a menor importância para o que foi dito.
Geni estava injuriada, era fato. Estava escrito na sua expressão.
Como se a pessoa do outro lado tivesse ousado lhe dizer:
“Geni, são apenas moinhos de vento.”
E ela irredutível afirmasse: “Não! São gigantes!” - encerrando a ligação.
Mas o que afinal teria acontecido? Com quem ela estava discutindo tão nervosa? Que tipo de coisa poderia estar a incomodando tanto?
Jamais saberei...
Numa estação qualquer Geni cruzou a porta do vagão e se foi, me privando da verdade.
Fui bruscamente abandonando às minhas próprias projeções sobre ela.
Afinal, cada um de nós vive, sim, a realidade da sua própria percepção.
domingo, 18 de março de 2012
A Papisa encimava o baralho...
A velha caixa rangeu sua tampa ao ser aberta. Mesmo depois de tanto tempo, o perfume das rosas ainda exalava da madeira escura.
Retirou o maço de cartas com cuidado. Na tinta gasta do verso, estava impressa a história de todas as mãos que já as haviam tocado.
A Papisa encimava o baralho. Como sempre, do jeito que sua avó havia lhe ensinado.
Lembrou-se do modo como ela embaralhava as cartas com firmeza. E das vezes em que fingia brincar, só para poder ficar observando ela sentada, na ponta da grande mesa da cozinha, deitando as cartas sobre a toalha branca.
Das expressões atentas, das amigas que vinham lhe consultar, enquanto ela falava com feição séria, apontando alguma lâmina.
Da sua voz carinhosa lhe explicando que as figuras estavam desbotadas e as bordas gastas porque era muito velho, tinha sido de alguém da família há muitos anos atrás e veio de geração em geração até finalmente ser dela.
Da vontade que tinha de mexer naquelas cartas grandes, quando por vezes sua avó a deixava ficar no colo, enquanto abria o tarô para alguém.
De repente, viu-se novamente menina, em pé ao lado da cama. Com os vívidos olhos verdes da avó lhe fitando, perdidos em meio ao rosto abatido, enquanto com algum esforço ela abria a gaveta do criado mudo e pegava a caixa do baralho.
“Eu recebi da minha mãe, que recebeu da mãe dela, que tinha recebido da avó dela, que também tinha recebido de alguém da família antes. Agora é seu. Ficará toda a vida contigo e um dia você também entregará para alguém.”
Estava atônita, não sabia o que fazer ou o que dizer. Suas mãos tremiam ao estendê-las para receber o presente.
“Vai guardar ele contigo sempre, não importa onde você for, levará ele contigo. Não deixará ninguém mais usar. Por nada vai se desfazer dele. Usará sempre com respeito. E um dia vai passar pra uma herdeira tua, como eu estou fazendo agora. Me prometa!”
“Eu prometo.”
Colocou a caixa sobre suas mãos trêmulas e lhe abençoou, tocando sua testa.
“Sim, eu prometo...” – balbuciou sem perceber, com o olhar perdido sobre as lâminas que segurava.
“Me fala! Você está vendo alguma coisa?” – disse a aquela voz aguda que lhe trouxe de volta ao presente.
[Excerto de um improvável futuro romance]
Retirou o maço de cartas com cuidado. Na tinta gasta do verso, estava impressa a história de todas as mãos que já as haviam tocado.
A Papisa encimava o baralho. Como sempre, do jeito que sua avó havia lhe ensinado.
Lembrou-se do modo como ela embaralhava as cartas com firmeza. E das vezes em que fingia brincar, só para poder ficar observando ela sentada, na ponta da grande mesa da cozinha, deitando as cartas sobre a toalha branca.
Das expressões atentas, das amigas que vinham lhe consultar, enquanto ela falava com feição séria, apontando alguma lâmina.
Da sua voz carinhosa lhe explicando que as figuras estavam desbotadas e as bordas gastas porque era muito velho, tinha sido de alguém da família há muitos anos atrás e veio de geração em geração até finalmente ser dela.
Da vontade que tinha de mexer naquelas cartas grandes, quando por vezes sua avó a deixava ficar no colo, enquanto abria o tarô para alguém.
De repente, viu-se novamente menina, em pé ao lado da cama. Com os vívidos olhos verdes da avó lhe fitando, perdidos em meio ao rosto abatido, enquanto com algum esforço ela abria a gaveta do criado mudo e pegava a caixa do baralho.
“Eu recebi da minha mãe, que recebeu da mãe dela, que tinha recebido da avó dela, que também tinha recebido de alguém da família antes. Agora é seu. Ficará toda a vida contigo e um dia você também entregará para alguém.”
Estava atônita, não sabia o que fazer ou o que dizer. Suas mãos tremiam ao estendê-las para receber o presente.
“Vai guardar ele contigo sempre, não importa onde você for, levará ele contigo. Não deixará ninguém mais usar. Por nada vai se desfazer dele. Usará sempre com respeito. E um dia vai passar pra uma herdeira tua, como eu estou fazendo agora. Me prometa!”
“Eu prometo.”
Colocou a caixa sobre suas mãos trêmulas e lhe abençoou, tocando sua testa.
“Sim, eu prometo...” – balbuciou sem perceber, com o olhar perdido sobre as lâminas que segurava.
“Me fala! Você está vendo alguma coisa?” – disse a aquela voz aguda que lhe trouxe de volta ao presente.
[Excerto de um improvável futuro romance]
domingo, 1 de janeiro de 2012
Um último rito
Não era, absolutamente, nesse contexto que eu imaginava reativar esse blog. Que nem mesmo está totalmente pronto ainda. Mas se há uma coisa que este ano me ensinou, é que não se pode perder tempo. Pra nada. Não há o que se esperar, a vida é urgente e não sabemos o que nos aguarda em seguida, para nos darmos ao luxo da espera.
Adash pretendia passar esse réveillon na praia, já que há anos não íamos ao mar. Então, recusei os convites de amigos e parentes para a virada, fui eu ao mar, realizar um último rito por sua passagem. Fazer a oferenda que ele pretendia fazer à sua mãe Yemanjá.
Chegando lá, encontrei um mar revolto, do jeito que ele mais gostava e sempre aparecia em seus sonhos. Ao entrar no mar, achei lindo ver um cenário de peixes saltitando contra o refluxo a minha volta e gaivotas dando rasantes sobre as ondas sob a luz da lua. Me lembrou muito este quadro, que é lindíssimo e infelizmente não sei o nome do artista.
No barquinho de oferenda, junto às rosas, entreguei ao mar a Princesa de Copas que ele havia desenhado (na oficina da Sarah Helena, na Mystic Fair) e a mesma carta do seu Thoth. Assim como seu perfume e mais algumas coisas dele.
[Princesa de Copas - Thoth Tarot - Crowley-Harris]
Adash amava essa princesa, via nela a expressão da plenitude, da liberdade e fluidez emocional. Dizia ser seu “arquétipo oculto” da corte.
Uma das suas observações sobre a carta do Thoth foi:
“É interessante a forma como a Frieda representou ela caminhando firme sobre as ondas.”
Deste modo, entreguei o filho de volta aos cuidados da mãe. Do ventre da Mãe-Mar ele veio, a este retorna, e leva consigo uma parte de mim.
Nunca simpatizei muito com anos de Oxum, minha mãe, pois me são sempre anos de grande impacto. Perdi minha mãe em um ano assim (2000) e agora o ciclo se repetiu.
Lavei meu pranto nas águas do mar noturno, no meu próprio rito de passagem. Sei que a falta nunca irá passar, a saudade ainda é indizível, mas todo ciclo precisa ter seu fim. Agradeço a sorte de ter tido esses dois capricornianos a meu lado nesses 28 anos de vida.
[Arcano XVIII - A Lua - Ancient Egyptian Tarot - Clive Barrett]
Agora é hora de encerrar o luto e seguir em frente, sozinho. Sim, porque estar sem ele(s), mesmo amando e contando com meus preciosos amigos, é estar sozinho.
Por isso, decidi virar o ano assim, sozinho, para vivenciar a minha Lua. Na escuridão da noite, sem estar hospedado em lugar algum, sem nenhuma garantia, contando apenas com o próprio instinto, de fronte às mais inquietantes emoções. Vislumbrando o vai e vem do mar e refletindo, à espera da chegada do Sol.
E quando o primeiro sol de 2012 surgiu, me encontrou a beira-mar, aliviado e reconstituído.
Cantando: “Mãe d’Água, Rainha das Ondas, Sereia do Mar...”
Tenho muito boas impressões sobre este novo ano. Percebo um link muito forte entre Lua-Fortuna-Mar, que publicarei num outro post.
Feliz e abençoado 2012 para nós!
Adash pretendia passar esse réveillon na praia, já que há anos não íamos ao mar. Então, recusei os convites de amigos e parentes para a virada, fui eu ao mar, realizar um último rito por sua passagem. Fazer a oferenda que ele pretendia fazer à sua mãe Yemanjá.
[Princesa de Copas - Thoth Tarot - Crowley-Harris]
Uma das suas observações sobre a carta do Thoth foi:
“É interessante a forma como a Frieda representou ela caminhando firme sobre as ondas.”
Deste modo, entreguei o filho de volta aos cuidados da mãe. Do ventre da Mãe-Mar ele veio, a este retorna, e leva consigo uma parte de mim.
Nunca simpatizei muito com anos de Oxum, minha mãe, pois me são sempre anos de grande impacto. Perdi minha mãe em um ano assim (2000) e agora o ciclo se repetiu.
Lavei meu pranto nas águas do mar noturno, no meu próprio rito de passagem. Sei que a falta nunca irá passar, a saudade ainda é indizível, mas todo ciclo precisa ter seu fim. Agradeço a sorte de ter tido esses dois capricornianos a meu lado nesses 28 anos de vida.
[Arcano XVIII - A Lua - Ancient Egyptian Tarot - Clive Barrett]
E quando o primeiro sol de 2012 surgiu, me encontrou a beira-mar, aliviado e reconstituído.
Cantando: “Mãe d’Água, Rainha das Ondas, Sereia do Mar...”
Tenho muito boas impressões sobre este novo ano. Percebo um link muito forte entre Lua-Fortuna-Mar, que publicarei num outro post.
Feliz e abençoado 2012 para nós!
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Me silencio...
Por vezes eu tenho muita coisa que poderia, ou quem sabe até deveria, ser dita a algumas pessoas.
Mas logo lembro daquela máxima pitagórica:
“Se o que tens a dizer não é mais belo que o silêncio, então cala-te.”
E me calo.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Just smile
Quando alguém me diz:
"Não imaginava isso de você!"
Eu simplesmente sorrio...
É um deleite saber que não caibo na concepção limitada das pessoas.
That´s all.
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
Nos domínios da Fortuna
Eu fui para São Paulo cheio daquela apreensão de estar indo pra “selva de pedra”, caótica e feroz. Mas eu estava tão enganado, sobre essa e tantas outras coisas...
Olhar aquela cidade imensa da janela do avião me trouxe a primeira certeza: estava adentrando aos domínios de Júpiter, da Roda.
Tenho uma paixão antiga pelas terras que são cortadas por algum rio (deve ser coisa de Oxum, sei lá). E ao pisar pela primeira vez naquele solo, me senti inexplicavelmente em casa.
Cinco dias passaram como cinco minutos. Não tive como ter dessa viagem tudo que queria, mas o que tive foi muito melhor do que eu esperava!
Vejo o maior dos caprichos da Fortuna se mostrar, quando acontece tudo que eu previa, mas de um jeito que eu não esperava. A surpresa é uma constante, uma deliciosa constante.
[Fortuna - Sibilla della Zíngara]
Do frenesi da Mystic à multidão da Sé, eu vi a assinatura Dela em cada canto. Em cada detalhe. E são esses que fazem toda a diferença.
Especialmente naquilo que não foi planejado, e apesar disso, se encaixou perfeitamente e deu certo no final.
Foi maravilhoso poder encontrar e reencontrar pessoas de quem eu já gostava, e passei a gostar ainda mais. Gente antes querida, agora amada.
Desfazer impressões equivocadas e descobrir aspectos apaixonantes que eu desconhecia em cada uma delas.
Esse giro da Roda, me trouxe uma infinidade de coisas boas. A mais importante foi que lá eu encontrei “certeza”.
Certeza de que eu tenho muito a fazer e apreender.
Certeza de que vale a pena ousar.
Certeza de que eu tinha ouvido Sua voz.
Certeza de que eu sou mesmo jupteriano e quero ter TUDO que gosto, em abundância.
Certeza me traz paz e me dá a confiança de que vai dar tudo certo, porque as manobras Dela são imprevisíveis, mas sempre trazem gratas surpresas.
Como Sua representação, no verso das cartas do Sibilla della Zíngara, que parece dizer: "Quem poderá saber os desígnios da Fortuna?"
Olhar aquela cidade imensa da janela do avião me trouxe a primeira certeza: estava adentrando aos domínios de Júpiter, da Roda.
Tenho uma paixão antiga pelas terras que são cortadas por algum rio (deve ser coisa de Oxum, sei lá). E ao pisar pela primeira vez naquele solo, me senti inexplicavelmente em casa.
Cinco dias passaram como cinco minutos. Não tive como ter dessa viagem tudo que queria, mas o que tive foi muito melhor do que eu esperava!
Vejo o maior dos caprichos da Fortuna se mostrar, quando acontece tudo que eu previa, mas de um jeito que eu não esperava. A surpresa é uma constante, uma deliciosa constante.
[Fortuna - Sibilla della Zíngara]
Do frenesi da Mystic à multidão da Sé, eu vi a assinatura Dela em cada canto. Em cada detalhe. E são esses que fazem toda a diferença.
Especialmente naquilo que não foi planejado, e apesar disso, se encaixou perfeitamente e deu certo no final.
Foi maravilhoso poder encontrar e reencontrar pessoas de quem eu já gostava, e passei a gostar ainda mais. Gente antes querida, agora amada.
Desfazer impressões equivocadas e descobrir aspectos apaixonantes que eu desconhecia em cada uma delas.
Esse giro da Roda, me trouxe uma infinidade de coisas boas. A mais importante foi que lá eu encontrei “certeza”.
Certeza de que eu tenho muito a fazer e apreender.
Certeza de que vale a pena ousar.
Certeza de que eu tinha ouvido Sua voz.
Certeza de que eu sou mesmo jupteriano e quero ter TUDO que gosto, em abundância.
Certeza me traz paz e me dá a confiança de que vai dar tudo certo, porque as manobras Dela são imprevisíveis, mas sempre trazem gratas surpresas.
Como Sua representação, no verso das cartas do Sibilla della Zíngara, que parece dizer: "Quem poderá saber os desígnios da Fortuna?"
domingo, 2 de outubro de 2011
Da Lua Feiticeira
Pois da Lua, fomos condenados a conhecer só uma face, cálida e mutável.
No coração de toda Feitiçeira habita uma fera indomada, ardil e voraz.
Diante de uma, nunca lance um desafio ou crie um desafeto.
E, acima de tudo, jamais ouse julgar conhecer os seus segredos.
[Cenas de Monica Bellucci no filme "O Pacto dos Lobos" (Le Pacte des Loups) 2001]
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
Primavera bendita!
Quando os primeiros raios de sol surgirem no horizonte, o inverno terá passado por completo.
["Sous le dôme épais" (The Flower Duet), aria da ópera Lakmé, de Léo Delibes]
Bendita e bem-vinda sejas, Primavera!
Dai-nos a alegria das tuas cores,
A beleza das tuas flores,
O encanto dos teus perfumes,
O deleite dos teus sabores,
O delírio dos teus prazeres,
A benção dos teus amores!
["Sous le dôme épais" (The Flower Duet), aria da ópera Lakmé, de Léo Delibes]
Bendita e bem-vinda sejas, Primavera!
Dai-nos a alegria das tuas cores,
A beleza das tuas flores,
O encanto dos teus perfumes,
O deleite dos teus sabores,
O delírio dos teus prazeres,
A benção dos teus amores!
domingo, 18 de setembro de 2011
"MELANCOLIA", uma Catarse Psicológica
Passaram-se já algumas horas desde que me levantei, aturdido, da poltrona do cinema. Mas o impacto do encontro com universo cinematográfico de Lars von Trier, em “Melancolia”, ainda está presente em mim, e creio que levarei mais alguns dias para digeri-lo.
Estou a anos-luz de distância do que se possa chamar de cinéfilo. Logo, o que segue não pode ser considerado uma resenha, de modo algum, tampouco uma crítica. Não é nada além de uma impressão minha, muito particular, acerca do filme. Que tentarei desenvolver sem criar algum tipo de spoiler.
“Melancolia” é o terceiro filme que assisto dele, e o primeiro que vejo no cinema. O que me levou a querer assisti-lo foi o mesmo motivo dos anteriores: comentários intrigantes tecidos por gente interessante.
Depois de vê-lo posso afirmar que os relatos não foram em nada exagerados. O filme é realmente assombroso!
A ausência do cartaz nos cinemas mais “comerciais” acabou por me trazer a gratificante descoberta das salas da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre.
Pra variar atrasados, conseguimos chegar ainda antes do início da exibição, mas já com os melhores lugares ocupados. Um lugar mais à frente e pra esquerda da tela foi a melhor opção encontrada, mas não importava, veria o filme nem que fosse de pé na porta!
As primeiras cenas são, pra dizer pouco, lindíssimas. Não há uma fala sequer, apenas música e uma fotografia indescritível em câmera lenta. As duas horas seguintes são um mergulho avassalador no âmago das emoções humanas. Não há nada de óbvio, gratuito ou esperado ali.
O estilo único com o qual von Trier filma me causa uma reação muito peculiar, parece atingir meu inconsciente, atacar meus instintos, mexe com o meu “bicho” interno. Neste filme, a forma como as cenas vão se arrastando, sendo compostas e cortadas, a sonoplastia que mais parece um ruído branco constante e os diálogos sussurrados e dissonantes só intensificaram esse sintoma.
Enquanto a história seguia na tela, iam me brotando sensações involuntárias de fome, raiva, ansiedade, sono, excitação, medo, etc.
Em cada personagem, ele espelha e explora com maestria questionamentos acerca dos conceitos pré-estabelecidos de comportamento, ética e felicidade que temos.
As relações e conflitos entre eles dissecam, numa análise quase cruel, o baile de máscaras que vivenciamos no convívio social.
Ele ousa, como nenhum outro, levantar hipóteses de um fatalismo desesperador. E também apontar verdades doloridas.
Em diversos momentos, me peguei tentando “encaixar” os fatos da história num âmbito dentro do “aceitável”, mas foi impossível. A negativa da validade a toda e qualquer convenção era a base do seu script. E é aí que a lâmina sutil do filme atravessa todas as barreiras e te arranca as entranhas. Na exposição impiedosa daquilo que talvez todos fujamos de considerar.
Fui sendo consumido por uma agonia crescente, o desejo por um desfecho pra história era enorme, mas o filme seguia seu ritmo impassível. Parecia não ter mais fim, sem limite.
Assim como a depressão da personagem, cuja complexidade vai desafiando por completo nosso entendimento. Vai além, muito além dos limites do que se consideraria real ou possível.
Até que terminou, em um ponto do qual não há mais volta.
Em meio a essa loucura fria, o lírico brota. Belíssimo. Mágico. Inexplicável.
No que me pareceu o retrato fiel da solidão vivenciada pela Alma, em sua passagem pela carne. Relutante em colocar-se dentro de um padrão ditado pelo mundo, incapaz de preencher-se com qualquer coisa menor do que realmente é. Inacessível a qualquer outra pessoa, desconhecida de todos debaixo da máscara, ansiando o êxtase do reencontro consigo, no seu universo particular.
A mente não é capaz de processar, ou suportar, coisas que as emoções entendem porque dispensam a lógica e não se põem sob análise.
[Trailer - "Melancolia" (Melancholia) - Lars von Trier - 2011]
Gostaria muito de saber quais foram os fatores que levaram von Trier à essa criação. Quem ele estaria representando ali? Que pessoas, além de si mesmo? Qual o sentido dessa simbologia que ele usou?
Não sou capaz de imaginar que nível de vivência tenha lhe ajudado a compor essa obra.
O filme é riquíssimo em símbolos e analogias passíveis de uma análise profunda. Mas pra isso teria que ser assistido novamente, creio que não farei isso tão cedo.
Confesso, me falta coragem...
Estou a anos-luz de distância do que se possa chamar de cinéfilo. Logo, o que segue não pode ser considerado uma resenha, de modo algum, tampouco uma crítica. Não é nada além de uma impressão minha, muito particular, acerca do filme. Que tentarei desenvolver sem criar algum tipo de spoiler.
“Melancolia” é o terceiro filme que assisto dele, e o primeiro que vejo no cinema. O que me levou a querer assisti-lo foi o mesmo motivo dos anteriores: comentários intrigantes tecidos por gente interessante.
Depois de vê-lo posso afirmar que os relatos não foram em nada exagerados. O filme é realmente assombroso!
A ausência do cartaz nos cinemas mais “comerciais” acabou por me trazer a gratificante descoberta das salas da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre.
Pra variar atrasados, conseguimos chegar ainda antes do início da exibição, mas já com os melhores lugares ocupados. Um lugar mais à frente e pra esquerda da tela foi a melhor opção encontrada, mas não importava, veria o filme nem que fosse de pé na porta!
As primeiras cenas são, pra dizer pouco, lindíssimas. Não há uma fala sequer, apenas música e uma fotografia indescritível em câmera lenta. As duas horas seguintes são um mergulho avassalador no âmago das emoções humanas. Não há nada de óbvio, gratuito ou esperado ali.
O estilo único com o qual von Trier filma me causa uma reação muito peculiar, parece atingir meu inconsciente, atacar meus instintos, mexe com o meu “bicho” interno. Neste filme, a forma como as cenas vão se arrastando, sendo compostas e cortadas, a sonoplastia que mais parece um ruído branco constante e os diálogos sussurrados e dissonantes só intensificaram esse sintoma.
Enquanto a história seguia na tela, iam me brotando sensações involuntárias de fome, raiva, ansiedade, sono, excitação, medo, etc.
Em cada personagem, ele espelha e explora com maestria questionamentos acerca dos conceitos pré-estabelecidos de comportamento, ética e felicidade que temos.
As relações e conflitos entre eles dissecam, numa análise quase cruel, o baile de máscaras que vivenciamos no convívio social.
Ele ousa, como nenhum outro, levantar hipóteses de um fatalismo desesperador. E também apontar verdades doloridas.
Em diversos momentos, me peguei tentando “encaixar” os fatos da história num âmbito dentro do “aceitável”, mas foi impossível. A negativa da validade a toda e qualquer convenção era a base do seu script. E é aí que a lâmina sutil do filme atravessa todas as barreiras e te arranca as entranhas. Na exposição impiedosa daquilo que talvez todos fujamos de considerar.
Fui sendo consumido por uma agonia crescente, o desejo por um desfecho pra história era enorme, mas o filme seguia seu ritmo impassível. Parecia não ter mais fim, sem limite.
Assim como a depressão da personagem, cuja complexidade vai desafiando por completo nosso entendimento. Vai além, muito além dos limites do que se consideraria real ou possível.
Até que terminou, em um ponto do qual não há mais volta.
Em meio a essa loucura fria, o lírico brota. Belíssimo. Mágico. Inexplicável.
No que me pareceu o retrato fiel da solidão vivenciada pela Alma, em sua passagem pela carne. Relutante em colocar-se dentro de um padrão ditado pelo mundo, incapaz de preencher-se com qualquer coisa menor do que realmente é. Inacessível a qualquer outra pessoa, desconhecida de todos debaixo da máscara, ansiando o êxtase do reencontro consigo, no seu universo particular.
A mente não é capaz de processar, ou suportar, coisas que as emoções entendem porque dispensam a lógica e não se põem sob análise.
[Trailer - "Melancolia" (Melancholia) - Lars von Trier - 2011]
Gostaria muito de saber quais foram os fatores que levaram von Trier à essa criação. Quem ele estaria representando ali? Que pessoas, além de si mesmo? Qual o sentido dessa simbologia que ele usou?
Não sou capaz de imaginar que nível de vivência tenha lhe ajudado a compor essa obra.
O filme é riquíssimo em símbolos e analogias passíveis de uma análise profunda. Mas pra isso teria que ser assistido novamente, creio que não farei isso tão cedo.
Confesso, me falta coragem...
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