domingo, 18 de março de 2012

A Papisa encimava o baralho...

A velha caixa rangeu sua tampa ao ser aberta. Mesmo depois de tanto tempo, o perfume das rosas ainda exalava da madeira escura.
Retirou o maço de cartas com cuidado. Na tinta gasta do verso, estava impressa a história de todas as mãos que já as haviam tocado.
A Papisa encimava o baralho. Como sempre, do jeito que sua avó havia lhe ensinado.

Lembrou-se do modo como ela embaralhava as cartas com firmeza. E das vezes em que fingia brincar, só para poder ficar observando ela sentada, na ponta da grande mesa da cozinha, deitando as cartas sobre a toalha branca.
Das expressões atentas, das amigas que vinham lhe consultar, enquanto ela falava com feição séria, apontando alguma lâmina.
Da sua voz carinhosa lhe explicando que as figuras estavam desbotadas e as bordas gastas porque era muito velho, tinha sido de alguém da família há muitos anos atrás e veio de geração em geração até finalmente ser dela.
Da vontade que tinha de mexer naquelas cartas grandes, quando por vezes sua avó a deixava ficar no colo, enquanto abria o tarô para alguém.

De repente, viu-se novamente menina, em pé ao lado da cama. Com os vívidos olhos verdes da avó lhe fitando, perdidos em meio ao rosto abatido, enquanto com algum esforço ela abria a gaveta do criado mudo e pegava a caixa do baralho.

“Eu recebi da minha mãe, que recebeu da mãe dela, que tinha recebido da avó dela, que também tinha recebido de alguém da família antes. Agora é seu. Ficará toda a vida contigo e um dia você também entregará para alguém.”

Estava atônita, não sabia o que fazer ou o que dizer. Suas mãos tremiam ao estendê-las para receber o presente.

“Vai guardar ele contigo sempre, não importa onde você for, levará ele contigo. Não deixará ninguém mais usar. Por nada vai se desfazer dele. Usará sempre com respeito. E um dia vai passar pra uma herdeira tua, como eu estou fazendo agora. Me prometa!”

“Eu prometo.”

Colocou a caixa sobre suas mãos trêmulas e lhe abençoou, tocando sua testa.

“Sim, eu prometo...” – balbuciou sem perceber, com o olhar perdido sobre as lâminas que segurava.

“Me fala! Você está vendo alguma coisa?” – disse a aquela voz aguda que lhe trouxe de volta ao presente.

[Excerto de um improvável futuro romance]




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