quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Vem, o tempo urge!

Sou acordado pelo estranho som de passos lentos, que se arrastam em minha direção. O ar está pesado, enegrecido, intoxicante. Cheira a mofo, velho, morto... Respirar dói.

Meu corpo jaz inerte, denso como chumbo. Mover-me exige muito esforço. O leito é conhecido, mas tenho certeza de que nunca o vi. Será que ainda durmo?

O vulto negro se aproxima. Meus olhos entorpecidos não distinguem dele mais do que uma figura embaçada.

O cabo da foice, que me golpeia a espalda, por fim me desperta. E junto dele o som trovejante daquela voz quase metálica: “Vamos acorde! Eu voltei!”

Meus ossos doem. Parece que são estes, ao invés dos ouvidos, que escutam e estremecem com aquela terrível voz! Que prossegue resmungando:

“Ainda assim, sempre sonhando...”

Levantando-me com esforço, posso agora distinguir melhor aquela figura cinzenta que segue lentamente até a mesa posta logo ali. Olho em volta, na busca instintiva de reconhecer o ambiente. Discorrem alguns momentos até que minha mente consiga compreender o que está ocorrendo.

No reduto aposento do meu interno, coisas se acumulam por todos os lados. O Velho desvia das minhas lembranças espalhadas pelo chão, o pé esquelético arrastando-as para fora do seu caminho, num gesto de total desdém. Não, ele não se importa com elas.

Meneando a cabeça desaprovadoramente, ele afasta para o lado algumas outras coisas que ocupam a mesa, me dizendo:

“Quanta porcaria tem guardado! O que pensa que vai fazer com tudo isso?”

Ai, que voz terrível ele tem! É a voz do tempo, que sussurra ecos do passado nos ouvidos da consciência. Ouvi-la é sentir a devastação do quanto já se passou, de quanto dele se perdeu, de tudo que não se fez. A frustração de tudo quanto poderia ter sido, mas não foi e já não poderá mais vir a ser, simplesmente porque o momento certo se perdeu, repetidas vezes.

Não respondo a pergunta pendente, pois esta dispensa réplicas. A maior inquietação está no que a presença dele aqui significa: Saturno retorna. Um ciclo todo se cumpriu. O tempo passou. A hora da verdade chega. O tribunal está instaurado e aquela pergunta inquisidora é inevitável: o que eu fiz desse tempo todo?

“Vem, o tempo urge!” – intima-me, pousando uma ampulheta sobre a mesa.

“O Senhor do Tempo tem pressa. Que ironia!” – digo ao me sentar diante dele.

Não aprecio sua visita. Desprezo-o, não nego. Não vejo em sua presença nada além de opressão e sofrimento. Após um breve instante de silêncio, Saturno retoma o assunto como que querendo mostrar-se interessado:

“Então, o que tem feito?”

“Vivido.”

“Claro.”

“Com alguns percalços... mas dizem que o tempo cura tudo, não é?”

“Não sei. Dizem isso?” – devolve, fitando-me profundamente.

Eu ainda não tinha atentado para aqueles olhos, verdadeiros abismos feitos de um negrume vazio. Buracos negros a consumir tudo que viram. Seu olhar enigmático me atravessa, percorrendo-me a alma. Até que, assumindo um tom grave, ele diz:

“Tenho fome.”

“Fome? Como assim?” – indago confuso.

A resposta surge num gesto surpreendentemente ágil pra aquela aparente morbidez. O Velho crava a mão ossuda no meu peito, invadindo-o. Terror! O choque me petrifica.

“Vamos ver o que temos aqui.” – diz ele, enquanto remexe dentro de mim como quem procura coisas numa bolsa. Saturno quer saciar sua fome alimentando-se das minhas experiências.

À medida que sua busca prossegue, cenas minhas são revividas, memórias obscuras já esquecidas no passado voltam à tona, um filme passa na minha cabeça.

“Sempre as mesmas coisas...” – resmunga, tomando uma ou outra forma estranha e mastigando-as aborrecido.

“O que você esperava? Foste cruel comigo!” – respondo revoltado.

“Criança tola, não entende que é a poda que permite crescer?!”

Não, não entendo. Só sinto o peso daquela presença, a dor do meu peito sendo dilacerado naquela cena insólita.

“Ah!” – anima-se de repente –“Ao menos conheceu o amor!”

Levando à boca aquela forma delicada, parece-me que alguma vida começa a preencher o olhar enegrecido. Devora-a avidamente com uma expressão de deleite.

“Fale-me dos seus sonhos.”

“Para que? Você irá destruí-los de qualquer forma.”



“Destruir? Não!” – replica espantado – “Sou eu que te cedo a chance de realizá-los!”

Permaneço olhando-o sem entender a afirmação. Estranhamente noto que aquela figura temível e assombrosa começa a querer ganhar ares mais agradáveis, alguma beleza parece surgir aos poucos naquele semblante antes tão sombrio. Pacientemente ele explica:

“Só a consciência da finitude traz sentido real às coisas. Faz com que valham a pena. É a visão dos limites que faz com que se possa realizar algo. Lança as bases para uma construção concreta. O tempo passa levando embora as ilusões. Só o que é real permanece. O que é verdade em você se mantém intacto. Aquilo de há de mais forte em você é o verdadeiro. O que realmente te move, te constitui e te define, é intocável. O resto sucumbe. Afinal, do que você é feito? Essa é a pergunta que eu trago!”

Estou perplexo. Sinto-me absolutamente pequeno nesse momento. Tenho vergonha de ter tamanha ignorância. Ele prossegue enfático:

“Tuas ilusões e anseios desmedidos é que te podem frustrar. Volto pra te lembrar da tua humanidade e de toda a satisfação que se pode alcançar dentro desta condição limitada. Todo o resto pode te mentir, eu apenas trago a verdade.”

E a verdade liberta! Esse entendimento aniquila todo o peso que eu estava sentindo. A forma horrorosa que eu via nele transmutou-se numa beleza tenaz. Lembrar de ser apenas humano, nada mais. A certeza da finitude é uma benção. Sou tomado por uma sensação de relaxamento, prazerosa, às beiradas do sono.

“Descanse, eu logo vou. Estou só de passagem. Você também.”

Vejo o fio de areia escorrendo continuamente na ampulheta sobre a mesa. A pergunta me transborda pela boca:

“Ainda tenho tempo?”

“Talvez. Não o desperdice mais.”

Minhas pálpebras pesam, não há como resistir a corrente de tranquilidade que me invade. Não há por que resistir. A última coisa que ainda consigo ouvir antes de desligar completamente, é carregada de um sotaque peculiar, em tom jocoso:

“Carpe Diem...”


[Meu abraço faterno a todos aqueles que estão passando ou vão passar em breve pelo retorno de Saturno.]




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Um comentário:

Anônimo disse...

Fabiano querido!Bibi....que lindo texto!estou embebecida com o que li!te adoro!ana carla