quinta-feira, 17 de maio de 2012

Dona Geni, de la Mancha

O horário atípico me deu a oportunidade de encontrar um assento vago no trem de volta. Coisa rara ultimamente.
Apesar disso, o cenário é o mesmo de costume: um grupo de pessoas envolvidas por pensamentos que navegam nas telas espelhadas dos seus celulares ou são orquestrados pelos seus fones de ouvido.

Agrupadas num mesmo espaço/tempo, vivem cada qual a sua realidade particular.
Especialmente por ela, aquela senhora sentada no lado oposto do vagão, conversando com o encosto do banco da frente.

Aparentava ter os seus mais de sessenta anos. Vestia-se sobriamente e tinha cabelos arrumados com o volume típico dos penteados das mulheres da sua geração, tingidos de um castanho profundo que fazia contraste intenso à pele clara.

Chamava-se Geni, mas eu ainda não sabia disso.

Em um tempo incerto, no seu universo particular ela travava uma discussão ferrenha com alguém. Alguém que a ofendeu em um passado recente e por um motivo qualquer ela não revidou na hora, e agora remoia as coisas que deveria ter respondido.
Ou talvez alguém que fosse encontrar para esclarecer uma situação, num futuro próximo, quando chegasse ao seu destino.
Não importava, Geni prosseguia vivenciando intensamente o seu monólogo.

Inquieta, ajeitava-se constantemente no banco, inclinava-se pra frente, agressiva, como se faz comumente para dar ênfase ao que estamos dizendo.
Logo depois recostava-se novamente no banco, puxando a gola do casaco de lã para fechá-lo sobre o peito e acomodar a bolsa no colo para apoiar as mãos.

Geni falava de si com firmeza, colocando a mão sobre o peito, logo acima de onde o tempo e o amamentar dos filhos haviam nivelado seus seios.
Permanecia alguns segundos desse modo, estava ouvindo o que o “outro” dizia. E se não lhe agradava, rebatia. Desfazendo o arranjo num novo gesto enfático.

Por vezes severa, por vezes irônica, as muitas nuances do embate iam emergindo no seu semblante.
Olhava pra fora e balançava a cabeça. Inconformada, dizia a si mesma que isso não poderia ficar assim, de jeito nenhum!

Fez o sinal da cruz quando passamos por uma igreja. Aquilo tudo podia na verdade ser uma oração. Deus era testemunha e estava do seu lado. Geni rogava que lhe desse força, porque ela foi oprimida.
Geni argumentava, gesticulava dando forma ao que estava dizendo e por fim apontava o dedo, na face imaginária do seu interlocutor.

Geni sabia se defender. Quem sabe em um outro tempo, pudesse ter sido uma advogada de renome ou uma implacável promotora de justiça.
Se a vida tivesse sido diferente, mas não foi. Com certeza havia sido muito bonita quando jovem, seus traços do rosto afinados e maçãs elevadas ainda preservavam a sombra dessa beleza que cedeu espaço às marcas de sofrimento que tempo deixou.

Mas a maturidade também lhe trouxe dignidade. Não, ela não se calaria mais! Ali, no imenso espaço existente naquele meio banco que ela ocupava no trem, Geni bradaria como uma leoa!
Porém num tom tão baixo, tão para si mesma, que por nada atrapalharia o raciocínio exigido pelas palavras cruzadas que o senhor ao seu lado preenchia.

Um som inconveniente surgiu para promover alguma trégua a sua batalha interna.
Abriu um tanto atrapalhada o zíper da grande bolsa de couro preto e remexeu até encontrar o aparelho celular.
Ao atender impaciente, identificou-se. Foi quando descobri seu nome.
Falou muito rapidamente sem dar nenhuma brecha pra conversa se desenvolver.
E logo bateu o flip do aparelho e largou de volta na bolsa, demonstrando não dar a menor importância para o que foi dito.

Geni estava injuriada, era fato. Estava escrito na sua expressão.
Como se a pessoa do outro lado tivesse ousado lhe dizer:
“Geni, são apenas moinhos de vento.”
E ela irredutível afirmasse: “Não! São gigantes!” - encerrando a ligação.

Mas o que afinal teria acontecido? Com quem ela estava discutindo tão nervosa? Que tipo de coisa poderia estar a incomodando tanto?

Jamais saberei...

Numa estação qualquer Geni cruzou a porta do vagão e se foi, me privando da verdade.
Fui bruscamente abandonando às minhas próprias projeções sobre ela.

Afinal, cada um de nós vive, sim, a realidade da sua própria percepção.




<----- Clique para ver mais postagens dessa categoria.

4 comentários:

Anônimo disse...

SOU TUA FÃ GURI!PARABENS...VC ME DEIXOU CURIOSA ..ASHUASUASUASUA...TB QUERIA CONHECER DONA GENI!BJOS ANA CARLA

Nana Odara disse...

olha olha...
tá-se bem por aki hã...
;D

Nana Odara disse...

olha olha...
tá-se bem por aki hã...
;D

Germana Zanettini disse...

Se ela for a mesma Geni do Chico, eu sei um pouco sobre a vida dela:

http://www.youtube.com/watch?v=jsB--twZgng