Branco para ter paz, diziam. Mas o que era paz? Paz não era aquilo que ela sentia quando tomava seus remédios? Aquele vazio repentino que a fazia dormir tranqüila sem pensar em nada? Não era isso a dita paz? Marcia escolhia a roupa sem entusiasmo.
“Usa uma calcinha vermelha pra você encontrar um amor” — sussurrava-lhe a irmã. Marcia não queria encontrar um amor. Marcia não queria encontrar nada. Aquilo tudo era bobagem, seria só mais uma virada de ano com a família na casa da praia. Todas iguais desde que ela se lembrava. Com o tempo só ficavam mais vazias, mais e mais brancas, como a roupa que eles usavam nesse ritual sem sentido que Marcia não entendia e fingia dar alguma importância só para não contrariar.
À mesa, lhe recomendavam comer lentilha para atrair dinheiro, simpatias, crendices. Meia-noite, um brinde de champagne, sorrisos, copos estalando. Tomou só um golinho por causa dos remédios, estes sim, mais do que o branco ou as simpatias, talvez lhe trouxessem alguma paz.
Festejos, abraços, as melhores intenções. Marcia sorria com esforço, atendia ao pedido da mãe para que não fosse desagradável.
Logo que pôde, recolheu-se para longe das comemorações.
Enquanto outros faziam retrospectivas do ano, sozinha em seu quarto, Marcia revivia frustrada as coisas que não fez, as coisas que não quis fazer, as coisas que não pôde fazer. Coisas que sequer tinha certeza que queria.
Ouviu os outros voltando da praia. Tinham ido ver os fogos, pular ondas para se limpar, para ter boa sorte, tudo bobagem, Marcia não acreditava nessas coisas. Marcia não acreditava em nada.
Os foguetes que não a deixavam descansar diminuíram aos poucos. A euforia da festa abandonava as pessoas e logo tudo era silêncio. Ela se revirava de um lado para o outro na cama grande. Um calor inusitado a importunava. De que vale tudo isto?
Outro ano começava e ela pressentia que seria exatamente igual. Ao final dele, estaria novamente na virada com a família, na praia, vestindo branco, sorriso forçado, um gole de champagne... Nada para comemorar, nada para se arrepender, nada para se orgulhar, nada.
As horas escorriam com Marcia angustiada em seus pensamentos. Levantou e abriu a gaveta do criado mudo, contou as cartelas de remédio controlado que tomava. Recolheu todas, calçou as sandálias e deixou o quarto.
Encontrou a casa vazia, altas horas da madrugada, todos já dormiam o sono dos festejos. Ganhou a rua e caminhou o curto trajeto dado pela sorte de ter uma casa quase à beira-mar.
Abandonou os calçados, deixou que seus pés afundassem na areia.
O rugido das ondas parecia perguntar o que seria dela. Marcia tirou um por um dos comprimidos e colocou na palma da mão. Logo amanheceria o primeiro dia de um novo ano e ela não esperava nada dele, nenhuma promessa, nenhuma esperança. Não havia motivos para continuar assim.
Fechou a mão cheia de remédios, correu para dentro da água.
Pela primeira vez em muito tempo Marcia tinha uma vontade, um desejo forte, uma certeza. Marcia realmente queria algo.
Numa súbita explosão, como a dos fogos que salpicaram o céu mais cedo, ela tomou uma atitude radical: abriu a mão carregada de comprimidos e lançou ao mar.
Marcia decidiu que aquele seria o melhor ano da vida dela!